O idiota superior

Na tecnologia da informação, infelizmente, durante muito tempo foi bonito ser arrogante, era uma relação indireta que se fazia: quanto mais idiota o programador (ou o cara do suporte, ou o administrador de rede, …), mais competente ele era. Isso criou a figura do idiota superior, aquele colega de trabalho que tinha carta branca pra maltratar a quem quisesse ou simplesmente se dizer o único competente para resolver os assuntos complicados.

Talvez encorajados pelo comportamento explosivo de alguns geeks de destaque, tais como Steve Jobs e Linus Torvalds - que possui alguns casos públicos notórios de xingamentos (aqui temos apenas um exemplo) e é um gênio da área na nossa época -, essas pessoas sentissem algum tipo de endosso da comunidade, já que a cultura do nerd da T.I. idolatra esse tipo de pessoa.

Se analisarmos com cuidado, isso soa antagônico com a filosofia do free software, mas a T.I. não é o free software. Na teoria a contribuição de todos é bem-vinda, mas na prática não é bem assim que acontece em alguns projetos, onde pessoas são discriminadas por orientação sexual, cor, nacionalidade ou por simples erros (que todos cometemos). Esse fenômeno também se manifesta em nossos locais de trabalho, basta olharmos com cuidado, se não perceberes um idiota superior na tua equipe pode ser que tu sejas ele.

Falo disso com tranquilidade, porque já interpretei esse papel. E faz um tempo percebi: não há desculpas para ser um idiota. Participei de equipes em que era cultivado o pensamento: “nós somos o cérebro da T.I., sem nós nada funciona e os outros todos são incompetentes”. A equipe em questão era muito performática, incentivava a excelência e capacidade técnica, éramos (em aspectos técnicos) bons profissionais, mas (em aspectos humanos) péssimas pessoas. Sabíamos disso, agíamos - por vezes - de forma consciente, porque para nós o único aspecto que importava era a produção técnica.

Esse é o pensamento maniqueísta de muitas pessoas da T.I., que enxergam o mundo como zeros ou uns: pessoas são competentes ou incompetentes; possuem mérito ou não possuem mérito. Na T.I. nós chamamos humanidade e ética de soft skills e muitas pessoas não ligam para essas habilidades, sequer as cultivam ou incentivam. E se falo em primeira pessoa sobre o lado ruim desse tópico, posso também falar do lado bom, porque, obviamente, a responsabilidade não recai sobre os outros por nossas ações, somos apenas influenciados e não obrigados a agir de determinada forma.

Por isso, retomo que “durante muito tempo foi bonito ser arrogante” na T.I., até o kernel do Linux adotou um novo código de conduta - não sem protestos (dos defensores da meritocracia) -, o mercado vem valorizando diversos aspectos do bom profissional, percebendo que pessoas não são máquinas de digitar código, que um grupo é melhor do que o indivíduo, que o idiota superior não deve ser mais tolerado (artigo interessante relacionado).

Assim, pela minha experiência, o comportamento nocivo e arrogante dos idiotas superiores se origina em um narcisismo patológico. A comunidade de T.I. já está se tratando desse mal, já percebemos seus efeitos colaterais, já remediamos seus sintomas e estamos tratando as causas. Mas o que estamos fazendo os indivíduos profissionais da tecnologia da informação? Não foi fácil entender o que se passava comigo, a armadilha na qual caí quando fui antagonista no meu local de trabalho, entender que o trabalho não é o aspecto técnico isoladamente, descer de um pedestal construído por mim e para mim.

Entender isso é um processo: nunca me considerei um idiota no âmbito pessoal e consigo delimitar hoje exatamente em qual período profissional fui e deixei de ser assim; nunca vi, nesse período, como ruins algumas atitudes péssimas que tomei; nunca pedi desculpas por comportamentos ruins com colegas de trabalho (e reconheço erros e me desculpo com facilidade). Engraçado sobre o último ponto: sempre acusei e me retratei por erros técnicos (o que demonstra que esse traço da minha personalidade não se perdeu por completo mesmo sendo um idiota).

Por fim, cultivar um ambiente de trabalho bom, tratar a todos com urbanidade, respeito, empatia, compreensão, cobrança justa não é soft skill; manter um ambiente de trabalho ruim, tratar aos outros como inferiores, desrespeito, incompreensão, cobranças impossíveis não é normal. Todos somos pessoas, somos mais competentes que nossos colegas em alguns pontos e menos em outros, isso não é mérito algum, o mérito é que consigamos unir nossos diferentes pontos fortes e produzirmos juntos bons trabalhos; mais mérito é ajudarmos uns aos outros a melhorarmos nossos pontos fracos, convivermos em harmonia, nos respeitarmos; mérito supremo é não nos tratarmos como máquinas, peças de engrenagem ou superiores e inferiores, apenas como o que somos: iguais, colegas e humanos.